quarta-feira, janeiro 23, 2019

Conto: O Bafo Da Lulu - Valdete Nilza Da Silva 2016

Jogo Do Bafo

O Bafo Da Lulu

Autora: Valdete Nilza Da Silva
Bertioga, Baixada Santista, São Paulo

     Zé Zico e Luciana, a Lulu, eram colecionadores de figurinhas da Copa de 1982. Como tantas outras crianças, adoravam trocar as figurinhas repetidas e disputar as mais cobiçadas que vinham nas embalagens do chiclet Ploc.
Numa tarde de verão – aquele calorão danado – rua de terra batida, poeira subindo a cada carro que passava, e meninos e meninas, sem medo de nada, brincavam em algum pedacinho de calçada, a brincadeira do momento: o jogo do Bafo.
Lulu, com suas 44 figurinhas, também queria jogar e então fez o convite ao amiguinho Zé Zico, o José Zico que morava no fim da Rua Brasil.
– Zé Zico, vamos jogar Bafo?
O menino tinha apenas seis figurinhas, pois ainda estava começando a sua coleção. Decidiu arriscar, e respondeu:
– Eu topo e só se for agora.
Ele tinha pouco tempo para brincar, pois logo teria que ir para a escola.
Zé Zico e Lulu foram para o outro lado da Rua Brasil, em frente ao número 10. Naquela Copa, vestiu a camisa 10 da Seleção Canarinho, ninguém menos do que o Meia Zico, que era do Flamengo, e foi o terceiro artilheiro da Copa de 1982.
Lulu, não era o “Chaves”, mas imaginou que com sua astúcia, venceria o adversário Zé Zico, fácil, fácil. Ela tinha 9 anos, e Zé Zico, 11, ou algo por aí. O que sei é que ambos adoravam o inocente jogo, até hoje passado de geração para geração.
Na primeira, “baforada”, Lulu ganhou a figurinha que trazia a foto do jogador Falcão. Depois outras e outras mais.
Expressando tristeza, Zé Zico não desanimou e avisou:
– Lulu, se prepara porque a próxima eu vou levar.
O menino queria vencer, sem trapacear. Sim, porque até no Bafo tem quem use de alguma artimanha para rapelar os jogadores adversários.
Então, colocaram mais figurinhas no chão. Zé Zico esquentou as mãos e com uma delas, levemente em forma de concha, mandou sobre elas aquele tapão. Pronto: Virou as figurinhas. Afinal, o objetivo do jogo é desvirar o maior número de figurinhas, que podem ser colocadas numa mesa ou mesmo no chão, umas sobre as outras, e voltadas para baixo. Aí é só dar o tapão e ver quantas viram para cima. Tudo o que ficar virado, passa a ser de quem deu o bafo.
– Uhuuu! Consegui! - Comemorou Zé Zico.
E continuaram jogando. Ora, Lulu vencia, ora a menina ficava sem mais um dos seus cromos. Ora Zé Zico perdia, ora ele ampliava a sua coleção. O jogo foi chegando ao fim e quando a brincadeira acabou ...
Lulu ficou sem as suas 44 figurinhas. Ficou sem chão. As figurinhas eram como um tesouro para aquela garotinha de cabelos negros. Afinal, não era todo dia que ganhava alguma moeda dos pais, para comprar um chiclete. Preferia o de tuti-fruti ao de hortelã. Não era todo dia que uma nova figurinha chegava às suas pequeninas mãos.
Lulu então pensou:
– E agora? O que vou fazer?
Ficar sem nenhuma figurinha, mas nenhuma mesmo, não estava nos seus planos. Então, a menina novamente convidou o amigo para jogar, mas agora seria “a brinca”, não mais pra valer.
– Zé Zico, coloque todas as figurinhas em um só monte e vamos ver quem consegue virá-las de uma só vez?
Feliz da vida, porque havia rapelado Lulu, Zé Zico não hesitou, e foi colocando figurinha sobre figurinha, todo sorridente.
Lulu, também não teve dúvida...
A menina, que deveria bater sobre o monte de cromos, com a mão completamente aberta ou levemente em “forma de concha”, passou a mão em todas as figurinhas e, como um foguete, correu para dentro da sua casa, quase atropelando a mãe, Isabel, que preparava o almoço, esperando o seu Souza chegar.
Zé Zico, enfurecido, mudou de cor. Vermelho, como um tomate, saiu correndo atrás de Lulu. Queria de volta as figurinhas que ganhara num jogo bem jogado.
O pai da menina, seu Souza – homem de bigode, bom coração e bons amigos –, estava chegando em casa. Percebendo que algo de errado havia acontecido com aqueles dois, tratou logo de proteger a filha. Instintivamente, os pais sempre desejam proteger aos filhos, mesmo quando já adultos e percorrendo suas próprias estradas.
Com ar de homem bravo, seu Souza declarou:
– Zé Zico, você não vai bater nela.
O menino, então, respondeu:
– Só quero minhas figurinhas de volta. Eu ganhei o jogo e ela perdeu, mas pegou as figurinhas e saiu correndo.
Calmamente, seu Souza chamou a filha, olhou para ela e nem precisou dizer uma só palavra. Aquele seu olhar dizia o que a menina deveria fazer.
Lulu apareceu e quase chorando foi logo dizendo:
– Toma, toma. Tudo bem, agora as figurinhas são suas, mas da próxima...
Zé Zico, nem se importou com o desafio. Estava pronto para o Bafo em qualquer outro dia. Agora era hora de voltar para casa, com suas 50 figurinhas. Tão radiante que estava, se quer percebeu que faltavam duas.
Hoje, Luciana (Lulu), professora, recorda-se do amigo Zé Zico - que virou médico, mudou de Bertioga, e ainda joga bafo com os filhos. Ri, como criança, da sua peraltice ao lembrar daquele dia em que perdeu todas as figurinhas, mas não queria ficar sem elas; e com grande carinho, fala do amor e dos ensinamentos transmitidos pelo seu Souza, e por dona Isabel.

Nota:

Na edição de 1982 da Copa do Mundo, a Seleção Brasileira de Futebol foi dirigida foi dirigida por Telê Santana e era tida como a grande favorita à conquista do título, mas a equipe “canarinha” acabou eliminada pela Itália.
Mesmo em tempos de jogos virtuais, jogar Bafo continua sendo uma das principais brincadeiras entre meninos e meninas, e colecionadores de figurinhas, inclusive adotada em escolas em projetos educativos e de recreação. O Bafo é uma brincadeira do tempo dos nossos avós - e dos tempos atuais; chama-se assim, porque o bafo (vento) provocado pelas mãos durante a batida no monte de figurinhas é que irá virá-las.

Valdete Nilza Da Silva

Sobre a autora:

A escritora e jornalista Valdete Nilza Da Silva ganhou o Mapa Cultural Paulista de 2016/2017 na categoria Conto na nossa região Baixada Santista com o seu conto "O Bafo Da Lulu".

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